domingo, 16 de março de 2008

Mendigo por uns dias

Mendigo por uns dias
02/09/2002

A pobreza desperta curiosidade de quem nunca a enfrentou.

Muitos dos turistas que visitam o Rio de Janeiro fazem questão de conhecer os morros e as favelas, por exemplo. Uma agência de turismo holandesa resolveu oferecer a seus clientes algo ainda mais próximo da vida real: por 400 dólares, eles podem viver durante quatro dias nas ruas de Londres, Paris ou Amsterdã como verdadeiros mendigos. Nada de bermudas nem filmes fotográficos na bagagem. Aos turistas só é permitido levar um cobertor, um instrumento musical ou um caderno de desenhos, acessórios que podem ser úteis na hora de pedir esmola. Com o dinheiro que conseguir arrecadar, o viajante deverá comprar sua comida ou, se for o caso, a bebida para se aquecer nas noites mais frias. Os mendigos de primeira viagem dormem ao relento, como seus colegas verdadeiros. Ao fim desse emocionante tour, eles podem desintoxicar-se da experiência passando alguns dias com um tratamento cinco-estrelas em um hotel chique da cidade. Mas, mesmo depois de tanta provação, há quem dispense a segunda parte do programa.

Foi o caso de alguns holandeses que, em junho, brincaram de ser pobres nas ruas de Amsterdã e, mais que satisfeitos, recusaram a esticada num hotel. Eles se espalharam em pequenos grupos pelas ruas da capital. Embora tenha boa dose de realismo, o pacote turístico não deixa de ser um teatrinho.

De longe, funcionários da Kamstra Travel, a agência responsável pelo programa, vigiam permanentemente os turistas. Eles tanto podem fazer as fotos de recordação da viagem como estão prontos a intervir caso os falsos
mendigos se envolvam em alguma confusão. É esse esquema de segurança que
justifica o preço. A programação, porém, não é à prova de risco, segundo os agentes explicam a seus clientes. "Deixamos claro que a experiência pode não dar 100% certo", diz Anneke Bakker, gerente da agência. Por isso, idosos, crianças e adolescentes não são aceitos. "Mas podemos garantir que essa é a melhor e mais segura maneira de saber como vivem os sem-teto e de se envolver num mundo desconhecido mas muito próximo de quem vive nas grandes cidades."

Cliente satisfeito: turista-mendigo nas ruas de Amsterdã

A possibilidade de penetrar no modo de vida dos miseráveis fascina muita gente. Na Alemanha, o escritor Gunter Wallraff deu um mergulho sem precedentes nesse universo ao viver no meio de imigrantes ilegais turcos como se fosse um deles, descobrindo como seus compatriotas humilham essas pessoas e como a sociedade mais rica as atira para atividades insalubres
e perigosas, como o trabalho em áreas de alta radiação, em usinas nucleares. Em Cabeça de Turco, Wallraff conta que, como pobre e estrangeiro, não obteve abrigo nem mesmo em paróquias administradas por padres alemães, que se recusaram até a batizá-lo. Em outra experiência, o jornalista francês Marc Boulet viveu um mês como um pária no sistema de castas hindu. Para isso, aprendeu a língua, vestiu-se com roupas surradas e escureceu a pele com uma tintura para cabelo. Na Índia, os intocáveis - nome dado à casta a que ele fingiu pertencer - são tratados como porcos. Quando conseguia algum alimento, ele tinha de comê-lo com os animais. Em seu livro, Na Pele de um Intocável, o jornalista conta ter passado por situações em que chegou a preferir a morte.

Para quem pretende levar a experiência a condições menos extremas, a agência holandesa criou seu programa cerca de um ano atrás. Mas há menos de um mês começaram a aparecer interessados. Segundo os criadores do pacote, são pessoas que já viajaram pelos melhores destinos e procuram roteiros mais emocionantes. As entidades de apoio aos sem-teto acusam a agência de tratar a pobreza como mera excentricidade. Jornais londrinos publicaram artigos com severas críticas à Kamstra Travel. "Temos todo o respeito pelas pessoas que não têm como viver melhor", defende-se a gerente. "Além disso, nossos clientes podem até tornar-se mais sensíveis à vida dessas pessoas." As autoridades londrinas também não gostaram da novidade, e o porta-voz da Scotland Yard já avisou: quem fingir que é mendigo nas ruas de Londres poderá terminar as férias na prisão.

O livro de Boulet: privações

A idéia do pacote partiu do dono da agência. Na juventude, quando estudou em
Paris, Bart Janssens enfrentou dificuldades financeiras e chegou a dormir algumas noites nas esquinas. "Viver como um sem-teto pode ser uma experiência muito rica", ele acredita. Apesar do entusiasmo com a própria idéia, Janssens e seus funcionários não pretendem levar ainda mais longe esse mini-reality show do turismo ampliando os roteiros para cidades como Rio de Janeiro, São Paulo ou outras de vasta violência nas ruas. A justificativa é que não há entre os olheiros de sua equipe de segurança nenhum que conheça esses lugares num nível que permita evitar grandes riscos para os turistas.
Fonte: Revista Veja 31 de julho de 2002

Nenhum comentário: